Presta Atenção no Procedimento...

...porque o basquete é duro e a bola de voleibol é mole.

sábado, setembro 03, 2005

...e mais um bacharel.

-Se vou virar mulher na cadeia, que seja uma ruiva.

É, parece que a nova safra de graduados anda a todo o vapor.
Para quem não pode ir ou não conseguiu chegar a tempo, mando abaixo o discurso da colação; e, para aqueles que não entenderam direito por causa do meu nervosismo, é claro.

Pela história
A todos presentes, boa noite.
Nós, graduados no curso de História do primeiro semestre de 2005, somos órfãos de nossa própria época. Diante de prazeres presentes, recompensas circunstanciais, nosso olhar cravado na história parece insistir no passado; como o “Ângelus Novus” de Paul Klee, fixamos o olhar em algo que nos é roubado pela insistência de nossas próprias asas em arrastar-nos presente acima.
Graduamo-nos em um ofício síssifico, árdua tarefa de, visando o topo, saber que nossa própria jornada interdita-nos a possibilidade de um fim. Sentimo-nos punidos por tentar enganar Thanatos e lembrar aquilo que todos ousam esquecer. Lembramos/construímos um passado ido, memória de memórias desbotadas no amarelado de arquivos, no ofegar de relatos, em vestígios conotadores de um quebra-cabeça irrecuperável.
Frente a um hedonismo alicerçado sobre o par prazer/dor, insistimos em um anteontem reiteradamente esquecido.
Nossa disciplina parece ser, antes de tudo, uma lição cômica.
Aristóteles acreditava no riso como possibilidade de contestação, indício de algum equívoco; pois vemos que verdades fazem sentido, sobretudo, para seu tempo. Afirmações inaceitáveis – posto que pequenas loucuras – carregam em si algo semelhante a anacronismos: qualquer certeza absoluta pode, então, soar historicamente improvável.
Pois é exatamente nesse incerto correr de tinta que nossas penas erguem monumentos inspirando um transe quase pitonista. Entretanto, de nosso oráculo concentramo-nos em uma espécie de futurologia retrospectiva, profecias passadas; mas, ainda assim, pouco temos de êxtase.
Não podemos, horizontalizados, recostarmo-nos em um divã imaginando-nos como formados em uma contemporaneidade atemporal. Temos algo de pintura; diferentemente da escultura, tal espécie de arte funcionaria, segundo Leonardo da Vinci, “per via de colocare”. Em outras palavras, transformar a tela harmoniosamente vazia em obra belissimamente suja. Traçamos, portanto, efemérides sobre nossos próprios quadros: buscamos compreender cada pincelada, entender tons sobrepostos e lembrar contornos borrados pelo tempo. Mostramos, enfim, que tal obra-prima não é concebida apenas no aqui e no agora, mas sim gestada ao longo de séculos num insistente gotejar de estalactites.
Somos, entretanto, o próprio enredo que não transborda nem uma fração de milímetro além do tamanho de nossa própria história.
Fomos pintados ao longo de quatro, cinco, seis anos como historiadores. Sobre nossa tela erguem-se monumentos de tempos imemoriais trazidos por afetos, aulas, inimizades, bibliografias; em evoluções sincopadas pelo ritmo de tantos semestres graduamo-nos esta noite.
Permitindo-nos o capelo, ofertando-nos nossos diplomas, a autoridade evocada por nossos professores e demais membros da mesa institucionaliza-nos como bacharéis e licenciados.
Mas sim, estas poucas linhas têm certo tom de prece: que tal ritual não se assemelhe a certo baile da Ilha Fiscal, preconizando o fim de um regime, mas que seja encarado como vitrine, amostra daquilo que levaremos, enquanto nossa história, para fora desses portões que por tanto tempo nos encerraram como graduandos.
Das trincheiras da primeira guerra mundial, um francês escreve um relato em seu diário: “A alguns passos de nós, no fundo da trincheira, jaz um corpo. É de um suboficial: está enterrado pela metade; vê-se apenas a cabeça, um ombro e um braço, com a mão contraída qual gancho. Ele está ali desde o dia anterior, o braço se enrijeceu e ficou especado, e todos que andam pela vala se engatam e tropeçam na mão e no corpo. Seria preciso cortar o braço ou retirar o corpo. Ninguém tem coragem.”
Alguns séculos antes, em 1560, o oficial de uma embarcação que se dirigia à colônia lusitana na América relata o que acontecera a um grumete: “aos dezenove de julho, que foi um sábado sobre a noite, fazendo com que o vento muito, por serem de través, estando o gajeiro da gávea em pé em cima para descer, bem descuidado, deu a nau um balanço grande, com que meteu, e lançou o pobre grumete por cima da gávea, que veio pelo cair ao mar, dando com as pernas e partes do corpo em os pés de um homem que a bordo estava pegado, o qual consigo houvera de levar ao mar, deixando-o aleijado da grande pancada que lhe deu um deles, e desfazendo a cabeça em pedaços, com os miolos fora dela, nas vergas, que todas ficaram tinta do seu sangue”.
Em 1880, na cidade do Rio de Janeiro, Lourenço Soares, sapateiro, fora acusado de assassinar Guilhermina, mulher com a qual viva há seis anos. A causa da briga foi a decisão de Guilhermina em alugar um quarto e se separar de seu amásio. Há testemunhas que descrevem-na como mulher muito trabalhadora, sustentando o casal.
Em 1876, em Pernambuco, algumas crianças brincavam em frente à matriz da igreja cantando a seguinte estrofe:
“Atirei um limão verde
De pesado foi ao fundo
Os peixinhos responderam
Viva Dom Pedro Segundo”
Em 1765, Alliot, francês exilado de sua pátria por crimes cometidos, remete uma carta a seu pai: “Dignai-vos pelo menos a abrandar minha sorte; já não fui suficientemente punido pela dor em minha perna, por estar separado de minha mulher e de meu filho, por me encontrar a duas mil léguas da pátria, mais miserável que os negros que habitam esta terra?”
Diante de tantas pequenas histórias fomos crivados historiadores. Lembranças de amores idos, de ódios esquecidos pelo tempo, de um dia-a-dia por vezes nada casual sempre imerso no mesmo cotidiano. Personagens que não conheceríamos não fossem os vestígios que nos são permitidos pelo tempo. Eis que, lusitanamente, sentimos saudade. Entretanto, configura-se como sentimento inusitado, um saudosismo referente a tudo aquilo que não vivemos.
Não posso desejar nada além de que não nos esqueçamos de tantas histórias. Alguns desta turma lecionarão, outros prestarão concursos, alguns se aventurarão em pesquisas. Mas, ainda que nossas penas não corram mais novas histórias, desejo que todos esses anônimos transbordem de nós em cada gesto, olhar, palavra. Enganemos Thanatos e lembremos daquilo que é esquecido.
Boa noite.


E tenho dito!

Os senhores tirem suas próprias conclusões.